Uma Análise Crítica. De Uruk a Harari: Lendo "Sapiens" como um Historiador de Mitos
"Sapiens", de Yuval Noah Harari, remodelou a forma como vemos nossa história. Mas, como toda grande narrativa, ela merece um olhar mais atento.
LITERATURA


"Sapiens" é um tema que me fascina profundamente, pois toca no cerne do meu trabalho: como narramos nossa própria história e como essas narrativas, sejam em tabletes cuneiformes ou em best-sellers globais, moldam nossa compreensão de quem somos.
"Sapiens: Uma Breve História da Humanidade", de Yuval Noah Harari, é, sem dúvida, um fenômeno. Sua maior força é a criação de uma narrativa coesa, uma epopeia grandiosa que conecta a savana africana ao Vale do Silício. É, em si, um artefato cultural fascinante. Como historiador que dedicou anos a decifrar os fragmentos de mitos sumérios para entender como uma civilização construía seu sentido, reconheço o poder do que Harari fez. Ele ofereceu ao mundo um mito de origem para o século XXI.
No entanto, é precisamente na força de sua narrativa que residem seus principais problemas conceituais. A clareza e a linearidade de "Sapiens" são conquistadas ao custo de simplificações e, por vezes, de um distanciamento perigoso do consenso acadêmico em áreas como a antropologia, a arqueologia e a própria história.
Permita-me, então, apontar alguns dos principais pontos de debate, traçando os paralelos que tanto me entusiasmam entre o antigo e o contemporâneo.
A "Revolução Cognitiva" e o Mito da Ficção
O problema é que isso subestima a complexidade do processo. A cooperação humana não nasce apenas de uma crença abstrata. Ela emerge de práticas rituais, de relações de parentesco, de interações materiais e de uma cognição social que evoluiu lentamente. O mito não é apenas uma "ferramenta" para manipulação ou cooperação
A Revolução Agrícola como "A Maior Fraude da História"
A transição para a agricultura não foi um evento único, mas um processo longo, complexo e multifacetado, que ocorreu de formas diferentes em diversas partes do mundo. Em muitos casos, foi uma escolha gradual e necessária diante de pressões populacionais e mudanças climáticas.
O Determinismo e a Ausência de Agência
Falta em "Sapiens" uma discussão mais aprofundada sobre a agência humana. Onde estão as disputas, as resistências, as reinterpretações? Onde estão os grupos subalternos que contestaram as "realidades imaginadas" dominantes? Harari descreve o poder das leis, dos impérios e do dinheiro de uma forma quase monolítica.
Quando estudo o Código de Hamurabi, não vejo apenas uma "ficção" imposta de cima para baixo. Vejo um documento complexo que reflete as tensões sociais da Babilônia, que foi negociado, contestado e, certamente, violado. A história é um campo de batalha de narrativas, não a implementação suave de uma única ficção vencedora. Da mesma forma, ao analisar a cultura pop hoje, não vejo apenas consumidores passivos de mitos corporativos; vejo fãs que subvertem, recriam e dão novos significados às histórias de Star Wars ou da Marvel, em um diálogo constante com os "impérios" da mídia. Essa complexidade da agência humana se perde na escala macro da narrativa de Harari.
"Sapiens" é menos uma "breve história da humanidade" e mais um poderoso mito contemporâneo sobre o que significa ser humano. Ele usa a ciência e a história para construir uma narrativa que responde às nossas ansiedades atuais sobre tecnologia, poder e o futuro da nossa espécie.
Assim como eu analiso o mito de Gilgamesh não para saber se ele de fato matou o Touro dos Céus, mas para entender o que sua história revelava sobre a mortalidade, a amizade e a civilização para os mesopotâmicos, talvez devêssemos ler "Sapiens" da mesma forma. Seu maior valor não está em sua precisão factual absoluta, mas no que seu imenso sucesso nos diz sobre nossa necessidade, no século XXI, de uma grande história que nos explique de onde viemos e, talvez, para onde estamos indo. É uma obra para ser debatida, criticada e, acima de tudo, pensada. E isso, para um historiador, é um presente.